domingo, 5 de julho de 2015

CHAVE DO CAIXÃO

Arte de Eduardo Nasi

No primeiro enterro que fui, do menino Manoelito, do colega de escola Manoelito, e repito Manoelito para vê-lo viver o que ele não teve oportunidade, para recompensar sua morte precoce aos sete anos, reembolsar seus dias de parcos crepúsculos e estreitos amanheceres, não entendi a fechadura de seu caixão. Por que trancaram meu melhor amigo? Ele sofria do medo de dormir no escuro, sofria do medo de maçaneta fechada, seu maior pânico era entrar no banheiro da escola e a trava emperrar.

Mesmo falecido, deveria estar com vontade de luz e ar puro.

Lembro que constrangi a sua mãe, concentrada em sua dor e fungando ritmada, ao perguntar à queima-roupa:

- Quem tem a chave do caixão?

Ela não respeitou o meu dilema, apenas me abraçou forte e chorou mais um pouco. Não se tratava de
uma metáfora, criança é muito realista, não se perde com divagações.

Havia uma urgência concreta e objetiva em minha questão. Estava preocupado com meu amigo, mesmo morto. O fim não termina a amizade. O cuidado não é obediente à morte.

Eu me aproximei do pai, que demorou para entender quem eu era e o que queria. Mas ao menos não me abandonou com cara de cavalo e replicou que não fazia a mínima ideia.

Meus olhos tomaram o tamanho daquela fechadura miúda, de piano de criança, de caixinha de bailarina, de estojo de vó. Quase sussurrava a minha irmã por um grampo de suas tranças, ansiado para futricar o casulo e libertar o meu fantasma de seu aguilhão de madeira.

O medo aumentava a dúvida. Será que o segredo ficava numa gaveta no escritório do cemitério? Será que o coveiro colecionava um molho de seus defuntos? Como que os pais permitiam que a chave do filho acabasse com um desconhecido? Como que uma encomenda é feita para não abrir?

Às vezes, sonho com Manoelito batendo na porta de meu quarto pedindo para entrar. Pode estar também batendo na tampa do caixão pedindo para sair. Não diferenciava as pancadas, se vinham de dentro ou de fora.

A minha cama tornou-se vizinha de sua cova. Ele é meu eterno amigo que dorme no chão. E nem preciso pegar mais o colchonete da garagem.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira 17/06/2015

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