segunda-feira, 11 de maio de 2015

O FABRÍCIO MORREU

 Arte de Charles Cottet

Vou contar um segredo: Carpinejar era meu amigo imaginário na infância. Sempre que sofria deboche na escola chamava um menino fictício de óculos grandes e destemido para resolver o conflito. Carpinejar era o meu contrário. Era o meu justiceiro. Era o meu confidente.

Se arcava com a gagueira, a timidez claustrofóbica e a vergonha da aparência, vinha o Carpinejar me defender falando alto, comprando briga com os meus agressores, desarmando preconceitos com sua risada poderosa.

Se chorava no fim das aulas, vinha o Carpinejar me consolar, secar as lágrimas e exigir que deixasse de ser maricas.

Se não me aproximava de nenhuma menina com receio de ser escorraçado, vinha o Carpinejar, com seu espírito galhofeiro, flertar e namorar as mais bonitas do bairro.

Carpinejar cresceu comigo e se transformou num autor de sucesso. Ele é quem realiza as palestras, escreve no jornal, surge polemizando na televisão, dá dicas de relacionamento.

O Fabrício continuava sendo o guri indefeso, inseguro, sensível, caseiro, discreto, dentro do Carpinejar. Aparecia com parcimônia, apenas com longa intimidade, para aqueles que ele julgasse realmente merecer.

Enquanto Fabrício se emocionava à toa, com seu olhar de pintassilgo no muro, cheio de dúvidas de si, à espera da confiança e lealdade irrestritas de alguém para sair do seu esconderijo do medo, Carpinejar abria espaço com sua confiança e certezas absolutas de gavião, sedutor afiado com as palavras.

Um completava o outro. Até a semana passada. O Fabrício morreu por grave amor. Não sobreviveu aos ferimentos invisíveis de sua dor. Definhou de tristeza ouvindo Vitor Ramil. Entregou tudo o que podia e não podia a uma mulher que não soube cuidá-lo, muito menos proteger sua fragilidade como deveria acontecer com os verdadeiros amores.

Não houve obituário. Não chamou atenção de ninguém. Nenhum familiar ou amigo notou seu desaparecimento - porque Carpinejar assumiu definitivamente o lugar da personalidade.

Não é de se estranhar a confusão. São idênticos, gêmeos nascidos da angústia de viver e de se doar. Fabrício teve a coragem de amar além do seu fôlego, soldadinho de chumbo que se sacrificou no fogo para salvar sua bailarina.

Hoje ele está enterrado no fundo do rosto de capela do Carpinejar. Bem ao fundo. Uma estrela morta que prosseguirá ainda por muito tempo com seu fulgor, como se estivesse viva para quem vê de longe.






Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, p. 8, 21/04/2015
Porto Alegre (RS), Edição N°
18139

Um comentário:

Evani Lima disse...

Oi, não pude me conter.
Tenho que comentar sobre isso, vivemos dessa forma e é assim que acontece. As vezes cedo, outras mais tarde. Mas somente você conseguiu traduzir essa transição.
Muito lindo! Parabéns, mais uma vez.
:)