quinta-feira, 14 de maio de 2015

GUARDA-VOLUMES

Arte de Eduardo Nasi

Tenho medo quando alguém desmontar a biblioteca de minha madre. As imensas e intermináveis prateleiras do casarão, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre (RS).

São mais de oito mil livros, distribuídos por todos os cômodos. Até no banheiro.

Meu receio é um só: escondíamos o que era proibido na retaguarda dos livros. Há uma vergonha retroativa nas contracapas dos clássicos.

Se um dia a biblioteca for abaixo, mudará a minha ingenuidade.

Não me lembro de tudo o que enfiava nas costas das obras, em especial na parte de cima do acervo, nos últimos degraus, perto do teto.

Era um hábito dividido entre os quatro irmãos.

Como o nosso quarto era funcional, tipo um hostel, com beliches e mais nada, terceirizamos nossas taras e segredos entre as coleções e enciclopédias. Sofríamos com a

mania de uma época em que se deixava um dos aposentos para o escritório e metiam a cambada de filhos no mesmo quarto.

Inventávamos armários pelos ares. Espantávamos a concorrência das traças e dos cupins. De tanto futricar, mantínhamos, pelo menos, o espaço limpo.

Um aguardava a saída do outro no lugar para produzir seu próprio esconderijo. Respeitávamos a troca de guarda. Quando encontrava algo que não era meu, nem mexia,

tomava cuidado para não gerar represálias e delações.

Armávamos gavetas nos vãos, decorávamos o título para reaver os nossos pertences. Evidente que nos confundíamos e às vezes atravessávamos tardes na biblioteca mudando

os livros de lugar, não se recordando precisamente da localização. Faulkner deve ter levado as balas azedinhas. John Dos Passos sequestrou as bolas de gude. E assim

perdia meu legado na babel dos corredores.

Os pais se orgulhavam de nossas leituras, admiravam o nosso amor pelas letras, elogiavam o nosso interesse apaixonado pela literatura – mal sabiam da verdade, que

poderá aparecer com a derrubada da mata de papel.

Atrás da erudição, vigorava o tráfico da cultura inútil: cigarros, maconha, camisinhas, caixas de bis, revistas pornôs, cartas de tarô, fichas de ônibus e de telefone.

Nunca fui um leitor puro.






Crônica publicada no site Vida Breve
Colunista de quarta-feira
06/05/2015


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